quinta-feira, março 30, 2006

Três desejos, mas um muito especial...


Esteve um dia lindo de Primavera. Mas a noite arrefeceu. Assim como eu tenho vindo a arrefecer aquilo que sinto pelas pessoas. A minha vida está a mudar, porque eu também estou a mudar. E mudança significa sempre novidade.

A minha situação quanto ao processo clínico de transexualidade que estou a atravessar está cada vez melhor. Célere, aproxima-se cada vez mais o dia em que finalmente farei a operação final. A reatribuição de sexo. Não sei quanto tempo demorará ainda, mas sei que estou cada dia mais próxima.

A minha mãe e a Eduarda têm sido as únicas pessoas que me têm dado apoio. A Edu não é novidade, mas a minha mãe sim. Finalmente, e com a ajuda da médica de família, ela está cada vez mais mentalizada em relação a mim. De que teve uma filha e não um filho.

Sinto pena dela. Sofro por mim e por ela, todos estes tormentos que temos que passar. Falamos e já nos entendemos. E ela mostra-se, depois de muito tempo, mais carinhosa e preocupada comigo. Quanto ao meu pai, a frieza e distanciamento é total. Ele ignora-me e despreza-me. Despreza quem eu sou.

E sinto pena das tristes criaturas masculinas que fizeram parte da minha vida nos últimos anos. Do meu ex-namorado de um ano e tal, que continua sozinho e vive para o trabalho; do meu segundo ex-namorado que vive fora de Lisboa, e que, apesar de bem sucedido, não encontra o amor; daquele que eu julgava ser uma paixão para lavar e durar e que não só é um mentiroso e um crápula, como sempre me escondeu que namorava uma qualquer mulher no Brasil. E o tal amigo especial que vive entre Coimbra e Lisboa e que está sempre entre este mundo e o outro, que, ou foge de mim a sete pés quando não está comigo, ou me trata como uma rainha quando nos vemos. Complexo do falo? Yep, isso mesmo. No fundo, e como definiu muito bem uma grande amiga, ele gosta da mulher que eu sou, mas não gosta de mim.

Tudo isto parece confuso, né? Mas não o é. O sumo a tirar desta fruta é que eu, pura e simplesmente, tenho tendência natural para atrair a porcaria. Dêem-me quatro excelentes homens e um quinto, sacana, que eu, sem saber bem porquê, fico-me pelo sacana. Como referi no post anterior, é karma. E eu carreguei-o até agora. Sei que ele continuará comigo até morrer, mas estará, digamos, inactivo. Pois se eu não me relacionar com ninguém, não poderei atrair esse tipo de homenzinho. Escolhi um caminho solitário. E esse caminho implica ter que construir tudo sozinha.

Só espero, depois de conseguir um trabalhinho, e de ter uma casita, poder concretizar o meu sonho de sempre: ser mãe. Já que não nasci munida das armas para isso, e muito menos encontrei o homem ideal para ser meu companheiro e pai do meu bebé, espero conseguir sozinha educar, amar, alimentar, tudo, tudo, tudo, um bebé adoptado. Mas meu, como se do meu ventre tivesse saído. No fundo, são apenas estas pequenas coisas que eu peço para mim. Nada mais. Não sou muito ambiciosa, nunca fui.

Se conseguir realizar estes três desejos, então já poderei dizer: sou feliz.


Lara-A-Escura

Foto de Anne Geddes, retirada DAQUI

sexta-feira, março 24, 2006

Fruto proibido?...


Há dias em que não se devia sair da cama... E hoje, como ultimamente, foi um desses dias. Confesso que me tem sido difícil exprimir o que sinto e penso, por isso não tenho escrito. Nem sei bem o que vai sair hoje. Mas a noite ajuda-me a relaxar e a pôr as ideias no lugar.

Sei bem que acabo sempre por me repetir naquilo que escrevo aqui. Aliás, acho que não há quem não o faça, principalmente se o blog é algo de muito pessoal, íntimo até, diria. E este meu é algo de muito especial, que se tem prolongado por vários servidores e endereços. É aquele "diário" que eu não escrevo no papel, mas que escrevo aqui, online.

Falo de mim, das minhas experiências, dos meus sentimentos, das minhas atitudes, enfim, de tudo um pouco. É uma forma de desabafar a monotonia (ou não) do dia-a-dia, visto que ter nascido diferente faz-me ter uma forma de ver a vida diferente. Acho que fui obrigada a amadurecer mais cedo, para fazer face às dificuldades da (minha) vida.

Agora, aos quase 35 anos, vejo que aquilo que eu pensava ser uma coisa, é afinal outra. Ou seja, nada (ou quase nada) é como eu pensava que era. Num momento tudo muda, numa fracção de segundo algo acontece, é tudo demasiado mutável. Inclusive as pessoas. Na sua maioria são demasiado mutáveis. Neste aspecto, muito mais os homens que as mulheres.

E eu que o diga. Num dia declaro a um homem uma paixão por ele, que parece ser correspondida, no dia seguinte afinal ele não sente nada por mim. É o eterno paradoxo da mulher transexual: ou se é freira, ou se é puta. Se apenas temos relacionamentos estáveis, namoros, somos freiras (aquelas que conseguem encontrar um homem que realmente as ame e respeite, claro!), se estamos com os homens que queremos, somos putas. Há que realçar o facto de uma grande maioria das trans ter que se prostituir para sobreviver, mas isso não faz de nós todas putas!

E os homens, no fundo, vêem-nos a todas como putas. Objectos sexuais. O fruto proibido. Pela minha experiência pessoal, até hoje não encontrei uma única excepção. Mas parece que há. Pelo menos há mulheres transexuais que conheço que têm relacionamentos estáveis com homens. Logo, e pelos vistos, eu é que tenho tendência para atrair toda a porcaria imunda que existe no universo masculino.

Deve ser o meu karma. Aliás, eu tenho um duplo-karma: nasci no corpo errado, e só encontro homens errados. O que visto por um certo prisma, até pode ser curioso. Porquê eu? Porquê comigo? Não há homens de jeito neste país da treta? Bem, realmente, num país da treta só deveriam existir homens da treta. Pseudo-homens. Não assumem nada, fazem tudo às escondidas. A família, os amigos, as mulheres, as namoradas... O que iriam pensar? Que eles namoravam ou tinham um caso com uma mulher transexual? Escândalo!

No entanto, algumas de nós conseguiram encontrar pérolas... Eu fiquei-me pelos porcos. Nenhum, sem excepção, prestava para alguma coisa. Nem um ou outro que eu até referi aqui, que foram importantes por algo. Demonstraram ser tão básicos e insignificantes como todos os outros. Pois é, as pessoas revelam-se, mais cedo ou mais tarde.

E eu vou-me revelando aqui, para quem quiser ler. Pelo menos enquanto estiver viva, e estes meus karmas não tenham ido comigo. E convém frisar que estou sozinha e sou celibatária por opção, ou por falta dela. E não me arrependo nem um bocadinho. Mas vou fazer como a minha melhor amiga, Eduarda, diz: ter calma e paciência, pois o que tiver que ser será.

Lara-A-Escura

sexta-feira, março 17, 2006

Não quero...


De que falar quando nada há a dizer? Quando a sensação que temos é que tudo foi dito e redito na nossa vida? O que fazer quando, depois de anos, nos apercebemos que nada podemos mudar em momentos?

Que dizer de um beijo roubado que de carinho feito, anos depois nada significou? Que dizer de uma vida dedicada a outros, nada significa apenas porque somos quem somos? Que dizer de uma imagem delicada de nós, se ter transformado num corpo delicado em si?

Que fazer quando já nada conta, já nada nos diz nada, a vida já não faz sentido? Que fazer quando temos a noção de que somos gozadas, porque para certas pessoas (homens) valemos menos que zero? Que fazer quando uma sociedade de moral judaico-cristã nos crucifica em cada acto que praticamos, em cada palavra que proferimos, em cada momento em que respiramos?

Acho que morremos por dentro. E essa é a pior morte. Auto-destruo-me há mais de dez anos. Anulei-me quase toda a minha vida. Tenho quase 35 anos, e parece que pouco ou nada aprendi sobre o mal, sobre a natureza pérfida da maioria das pessoas. Por isso continuo a auto-destruir-me até morrer. De uma doença, talvez. De inanição, por exemplo.

Já me diagnosticaram (quase) tudo, mas sem haver certezas de (quase) nada. A única certeza que há é que "sofro" de disforia de género, o que faz de mim uma mulher transexual. Já me disseram que estou com uma "depressão major", que estou com uma anorexia nervosa, etc., etc., etc. A única coisa que sei é que não quero viver. Essa é a única certeza que tenho, fora as "depressões", "negativismos", e por aí fora.

Se viver é isto, dor e sofrimento, não quero. Por favor. Não quero.

Lara-A-Escura

quarta-feira, março 15, 2006

Esquecer-me de ti, de mim...


Numa noite de lua inchada, quase cheia, os meus dedos teclam palavras que são insondáveis para o ouvido de qualquer um. Nestes últimos tempos não tenho sido uma grande faladora, muito menos no que respeita aquilo que sinto/penso.

Sim, porque não consigo sentir sem pensar. Penso sempre no que sinto. E sinto sempre o que penso. E ultimamente não tenho conseguido afastar a dor daquilo que sinto. Parece que vivo um pesadelo real, em que tento acordar, mas apenas consigo adormecer dentro dele.

Pais, irmãos, homens, tudo é um pesadelo para mim. Só oiço o que não quero. Só tenho o que não deveria ter. E acabo por ficar de mãos vazias, sem nada. Este nada representa ser escorraçada, humilhada e gozada por toda esta gente, que de seres humanos têm muito pouco.

Talvez esteja a passar pela crise-de-identidade-da-mulher-transexual-pré-operada-e-quase-a-sê-lo. Talvez as minhas angústias e medos me levem a criar uma barreira de hipersensibilidade a tudo o que me rodeia. Mas não há nada a fazer. Eu sou mesmo assim.

Apesar de eu querer fazer algo. Ser mais forte. Dizer que quero ser feliz ao lado de um homem que me ame. Que quero trabalhar no que gosto e ser respeitada. Que quero ter a minha casinha com tudo o que sempre sonhei, e com a praia ao pé.

Mas parece que o pesadelo não acaba. E o meu corpo já dá sinais dele. Náuseas, diarreias, tensão baixa, depressão... Sinto-me um joguete nas mãos de alguma força superior a mim. E eu não tenho forças para a combater.

Resta-me apenas uma coisa. Fazer um favor aos outros e a mim própria, e sair deste país-buraco o mais depressa possível. Eles ficam livres de mim e vice-versa.

Sei que vou sentir falta de muita coisa, de muitos sentimentos, dos meus amigos e amigas, especialmente da grande amiga de todas as horas, a Eduarda. Mas ainda tenho esperança que melhores dias virão... Será?

Lara-A-Escura

segunda-feira, março 13, 2006

Felicity Huffman não ganhou o Óscar?


Felicity Huffman pode não ter ganho o Óscar para Melhor Actriz Principal, mas ganhou o meu Óscar, por um dos melhores desempenhos que vi até hoje no excelente "TransAmerica".

Sóbria, completamente embrenhada na personagem, Felicity leva-nos a crer que não estamos a ver um "boneco" no ecrã, mas sim uma pessoa real. A sua interpretação é simplesmente fabulosa, e qualquer mulher transexual, por maiores que sejam as diferenças de vivências, já passou (ou passa) por várias das situações que Bree (personagem de Felicity) passa.


"TransAmerica" é um filme com ritmo, um "road movie" diferente, com momentos tristes e alegres, choros e risos, calma e histerismo. O realizador Duncan Tucker fez um, senão o melhor, trabalho que já vi sobre uma mulher transexual e o seu percurso de vida.

Que se desengane quem pensa que este é um filme politicamente correcto. Não é. Mas a vida também não é politicamente correcta. Resta-me acrescentar que recomendo vivamente a toda a gente que o veja. Talvez se o vissem as pessoas perdessem muitos dos preconceitos que têm em relação à transexualidade, e neste caso específico em relação à transexualidade feminina.

Felicity não ganhou por ter tido a coragem de representar uma mulher transexual. Mas ganhou o Óscar do meu coração.

quarta-feira, março 08, 2006

De que se fala quando falamos de amor


Amor pode ser muita coisa. Mas acima de tudo amor é dor, sofrimento. É entregarmos o nosso coração a alguém e ou não termos retorno, ou sermos pisadas.

E foi o que mais uma vez me aconteceu. Apaixonei-me por um homem que julgava especial, e ele, pura e simplesmente, pisou em todos os meus sentimentos.

Curiosamente, a minha mãe avisou-me, há uns tempos atrás, que o facto de eu ser quem sou, uma mulher transexual, iria levar a que os homens me gozassem a seu bel-prazer.

E, infelizmente para mim, é isso que tem acontecido. E eu nada posso fazer. Nem vou fazer nada. Afinal, daqui a pouco tempo embarcarei num avião que me levará para a minha nova vida.

Quanto a ele, e aos outros, nada mais são que passado. Adeus e obrigada por serem os sacanas sem escrúpulos que são.

E nada mais tenho a dizer. A não ser que amor é igual a dor, e eu não quero.

Lara

VIGÍLIA POR GISBERTA EM LISBOA

VIGÍLIA POR GISBERTA
Frente ao Patriarcado de Lisboa, Campo de Santa Clara
5ª feira, 9 de Março, às 19h


Torturada ao longo de dias, vítima de sevícias sexuais, assassinada com extrema brutalidade. GISBERTA tinha uma vida que os meios de comunicação social têm distorcido e um rosto que têm omitido. Um rosto, e um crime, que não permitimos que seja esquecido ou caia no esquecimento sem consequência , como se de um facto banal se tratasse.

Sem-abrigo, transexual, imigrante, seropositiva, utilizadora de drogas, trabalhadora do sexo, assassinada por crianças e jovens de uma "instituição de menores". Das fragilidades de Gisberta ao inferno e discriminação social que representa o sistema de (des)protecção de menores em Portugal, uma acumulação de exclusões e, infelizmente, motivos de discriminação permanente na sociedade portuguesa.

Situar a resposta ao crime no baixar da idade para a responsabilização criminal é lavar as mãos do Estado. Este que assuma as responsabilidades que nunca assumiu sobre as crianças em risco, ao invés de os abandonar em instituições da Igreja e à educação parcial que nelas se pratica. A Justiça que assuma a responsabilidade criminal de quem já tem idade para isso. Mas que não se menorize o crime em si com o argumento da idade dos agressores.


VIGÍLIA POR GISBERTA

Frente ao Patriarcado de Lisboa

Campo de Santa Clara

5ª feira, 9 de Março, às 19h

* PARA DIGNIFICAR A MEMÓRIA DA VÍTIMA

* PARA EXIGIR A PROFUNDA REFORMA DO SISTEMA DE PROTECÇÃO E ACOLHIMENTO DE MENORES EM RISCO

* PARA EXIGIR LESGISLAÇÃO ABRANGENTE CONTRA OS CRIMES MOTIVADOS PELO ÓDIO E PELO CONJUNTO DOS PRECONCEITOS ASSOCIADOS A ESTE CRIME

Para apoiar (subscrever) a iniciativa ou deixar uma mensagem no livro internacional de condolências:

http://tgeu.net

http://tgeu.net/Gisberta/Gisberta.htm